Marluci Menezes
Mouraria: onde mora o quotidiano na invenção do património urbano?
Marluci Menezes – Antropóloga, Investigadora do LNEC, marluci@lnec.pt
Fado, músicas várias e dança, passeios guiados através de roteiros (históricos, gastronómicos, artísticos), exposições de fotografias em espaço público, festas criativo-temáticas, perfomances, esculturas e vitrinas criativas, entre outros aspectos, compõem uma cenografia urbana que se repercute em imagens de um bairro que, parecendo estar sempre em festa, reinventa o seu património numa curiosa articulação entre passado e futuro.
O tempo passado é particularmente expresso numa espécie de revivalismo de momentos muito específicos : o tempo em que os mouros ali viviam, ao que parece inventando um bairro que, desde sempre, seria multicultural (século XII), o tempo da Severa – curiosamente um mito – e da invenção do fado (possivelmente século XIX), o tempo do património arquitetónico e da história dos edifícios e da cidade (marcado por edifícios mais emblemáticos). O tempo futuro, por outro lado, é expresso num projeto de bairro que tem como horizonte temporal uma data particularmente em voga numa Europa do século XXI : o Horizonte 2020. A que património se pretende referir quando, a princípio, o património é uma construção social que se realiza no tempo presente a partir da articulação entre tempo passado e tempo futuro, entre bairro herdado, bairro presente e bairro projetado?
As imagens de uma Mouraria que continuamente comemora o seu património – de uma Mouraria sempre em festa – são veiculadas através de discursos de diversos tipos, documentários, crónicas, artigos, sobretudo difundidos pelos meios de comunicação social e virtual, bem como articulam-se com o atual processo de intervenção urbana que decorre no bairro da Mouraria. Estará a Mouraria a viver um tempo suspenso ? Há alguns anos, quando estudei mais aprofundadamente alguns aspectos do bairro, observei como na compreensão do processo de inscrição da Mouraria no mapa social da cidade, era fundamental estar-se atento ao quotidiano da vida de rua, do espaço público. Observei ainda como que as imagens e visões de mundo que sobre o bairro se iam quotidianamente construindo, se davam a partir de uma interessante relação entre passado, presente e futuro, bem como a partir de um conjunto de relações socio-espaciais que se estabeleciam numa dinâmica articulação entre dentro e fora, encima e em baixo, traseiras e frente, longe e perto, Mouraria grande e pequena. Paralelamente observei que as cadências quotidianas eram temporariamente alteradas nas situações extraordinárias (ex.: momentos de festa e procissão, em muito identificados com um tempo cíclico). Nas situações extraordinárias o bairro parecia englobar a cidade – como se ao mesmo tempo a cidade fosse o bairro e o bairro fosse a cidade – e, assim, simbolicamente o bairro, as suas gentes, reencontrava forças para no quotidiano continuar a sua tão ambígua e ambivalente participação no mapa social de Lisboa, reinventando-se como património cultural e urbano.
Mas, numa Mouraria que parece viver uma festa continuada no tempo e no espaço, como que se define a memória local ? Terá a cidade englobado o bairro, assim transformado em apenas mais um dos pontos de uma cidade que funciona em rede, sem especificidade socio-territorial? Como as situações extraordinárias se articulam com o quotidiano local ? Como se dá a relação social entre tempo passado, tempo presente e tempo futuro ? Na constante invenção do património cultural local, qual o lugar do quotidiano ? Ainda que presentemente tenha um olhar mais distante do dia-a-dia local, tenho contudo recolhido um conjunto de impressões que tem-me levado a pensar sobre um quotidiano que parece querer-se esconder, mas que insistentemente continua, transforma-se e reinventa-se, projetando o património local. Mas que quotidianoé esse ? As impressões que mais recentemente tenho vindo a acumular continuam por revelar um dia-a-dia de trabalho, de brincadeira, de pobreza, de risos, tristezas e discussões, enfim, de diversidades e diferenças, mas também de muitas desigualdades e desencontros. Um quotidiano visível mas tornado invisível na representação de fadistas de tempos outros em prédios em ruínas, nos relvados artificiais colocados num espaço público sempre em festa, mas que não conseguem esconder a brincadeira de quem joga críquete na Praça do Martim Moniz, nem tão pouco a piscina insuflável em pleno núcleo do bairro para alegrar as crianças num domingo ensolarado, enquanto por detrás continua-se a vender drogas… O que mudou no quotidiano da Mouraria do século XXI ?
Falar sobre o interesse em recuperar o quotidiano para compreender o processo de reinvenção do património da Mouraria, é o objetivo desta reflexão.
Palavras-chavas : quotidiano, festas, patrimonio urbano, Mouraria
Mouraria: où habite le quotidien dans l’invention du patrimoine urbain ?
Fado, musiques variées et danse, promenades guidées à travers des circuits (historiques, gastronomiques, artistiques), expositions de photographies en espace public, fêtes créativo-médiatiques, performances, sculptures et vitrines créatives, entre autres aspects, composent une scénographie urbaine qui se répercute en images d’un quartier et qui, paraissant être toujours en fête, réinvente son patrimoine dans une curieuse articulation entre la passé et le futur.
Le temps passé est particulièrement révélateur d’une espèce de passéisme de moments très spécifiques : le temps durant lequel des Maures vivaient là, et qui apparaissent comme ayant inventé un quartier qui aurait toujours été multiculturel (12ème siècle) ; le temps de Severa – curieusement un mythe – et de l’invention du Fado (probablement au 19ème), le temps du patrimoine architectural et de l’histoire des édifices et de la ville (marqué par certains édifices plus emblématiques). Le temps futur, d’un autre côté, est exprimé dans un projet de quartier qui a comme horizon temporel une date particulièrement en vogue dans l’Europe du 21ème siècle : « l’horizon 2020 ». A quel patrimoine prétend-t-on se référer alors que le patrimoine est une construction sociale qui se réalise dans le temps présent, à partir de l’articulation entre le temps passé et le temps futur, entre le quartier hérité, le quartier présent et le quartier projeté ?
Les images d’une Mouraria qui commémore continuellement son patrimoine – d’une Mouraria toujours en fête – sont véhiculées à travers divers types de discours, documentaires, chroniques, articles, surtout diffusés par les moyens de la communication sociale et virtuelle, et s’articulent avec l’actuel processus d’intervention urbaine en cours dans le quartier de la Mouraria. La Mouraria serait-elle en train de vivre un temps suspendu ? Il y a quelques années, quand j’étudiais plus profondément certains aspects du quartier, j’ai observé combien, dans la compréhension du processus d’inscription de la Mouraria dans le schéma social de la ville, il était fondamental de rester attentif au quotidien de la vie de rue, de l’espace public. J’ai encore observé comment les images et visions du monde qui allaient se construire quotidiennement dans le quartier, s’exprimaient à partir d’une intéressante relation entre le passé, le présent et le futur, aussi bien qu’à partir d’un ensemble de relations socio-spatiales qui s’établissaient dans une articulation dynamique entre le dedans et le dehors, en haut et en bas, derrière et devant, loin et près, d’une Mouraria grande et petite. Parallèlement, j’ai observé que les rythmes quotidiens étaient temporairement altérés par des moments extraordinaires (ex. moments de fêtes et processions, souvent identifiés en moments cycliques). Dans les moments extraordinaires, le quartier semblait englober la ville – comme si au même moment, la ville était le quartier et le quartier était la ville – et ainsi, symboliquement le quartier, ses gens, retrouvaient des forces pour qu’au quotidien puisse continuer sa si ambiguë et ambivalente participation au schéma social de Lisbonne, en se réinventant comme un patrimoine culturel et urbain.
Mais dans une Mouraria qui parait vivre une fête continuée dans le temps et dans l’espace, comment se définit une mémoire locale ? La ville aurait-elle englobé le quartier, le transformant en à peine plus que l’un des points d’une ville qui fonctionne en réseau, sans spécificité socio-territoriale ? Comment les situations extraordinaires s’articulent-elles avec le quotidien local ? Comment se présente la relation sociale entre le temps passé, le temps présent et le temps futur ? Dans la constante invention du patrimoine culturel local, qu’elle est la place du quotidien ? Bien que j’ai aujourd’hui un regard plus distant sur le au-jour-le-jour local, j’ai néanmoins recueilli un ensemble d’impressions qui m’amènent à penser un quotidien qui semble vouloir se cacher, mais qui instamment continue, se transforme et se réinvente, en mettant en projet le patrimoine local. De quel quotidien parle-t-on ? Les impressions que j’ai été amené à accumuler récemment continuent de révéler un au-jour-le-jour de travail, de dérision, de pauvreté, de rires, tristesses et discussions, enfin, de diversités et de différences, mais aussi de beaucoup d’inégalités et de détournements. Un quotidien visible mais qui se montre invisible par la représentation d’anciens chanteurs du fado peints sur des immeubles en ruines, par les pelouses artificielles placées dans l’espace public toujours en fête, rien qui parviennent à cacher le dérisoire de celui qui joue au criquet sur la Place Martim Moniz, pas plus que la piscine gonflable au cœur du quartier pour rendre heureux les enfants par un dimanche ensoleillé ; pendant qu’à côté on continue de vendre les drogues… Qu’est-ce qui a change dans le quotidien de la Mouraria du 21ème siècle ?
L’objectif de cette réflexion est d’évoquer l’intérêt de la récupération du quotidien afin de comprendre le processus de réinvention du patrimoine dans la Mouraria.
Mots-clés : quotidien, fêtes, patrimoine urbain, Mouraria.